terça-feira, dezembro 20, 2005

621. A coerência dos incoerentes

Como é sabido, a pedido de algumas famílias, ao que parece nem sequer constituídas, e estribado na circunstância de a nossa Constituição prescrever a separação da Igreja e do Estado, considerando Portugal um Estado de Direito não confessional, o Governo que temos deu “instruções” às escolas no sentido de que fossem retirados os crucifixos que por elas estivessem afixados em tudo quanto fosse sítio.

Tenho a minha opinião sobre o assunto, mas não vou expressá-la aqui, uma vez que não interessa para o caso de que vou tratar.


O Governo decidiu o que decidiu, não teve, porém, coragem suficiente para assumir frontalmente o problema, tendo-se limitado a dar “instruções” ou “sugestões” ou lá o que foi e que ninguém entendeu bem…

Mas se decidiu ou instruiu ou sugeriu, está decidido, está instruído, está sugerido. Bom proveito lhe faça.

O que não se entende é que representantes desse mesmo Estado, laico, não confessional, separado da Igreja, de todas as Igrejas, como tem que ser, não cumpram a Constituição da República, strictu sensu, limitando-se a observá-la apenas naquilo que se lhes afeiçoa melhor aos interesses próprios.

Mandaria a coerência de qualquer ser pensante coerente que, uma vez tomada a posição a que me refiro acima e de que todos tomámos recentemente conhecimento, que o Estado, representado por Presidente da República, Assembleia da República e Governo, se afastasse de vez da Igreja e, consequentemente, de todos os assuntos religiosos.

Que acontece, porém?


Acontece que a Assembleia da República ostenta – garbosamente ostenta – na sua entrada principal, uma enormíssima - quase diria afrontosa... – árvore de Natal!

E mais:

Acontece, igualmente, que esta tarde, ao chegar a casa, tive oportunidade de assistir à transmissão, via canal Parlamento, de uma mensagem natalícia trazida até aos portugueses pela palavra da 2ª figura do Estado Português, Sua Excelência o Presidente da Assembleia da República, o próprio.

Mas, então, em que ficamos?!

É que – e lembra-se isto a benefício de quem esteja esquecido ou nunca tenha sabido – que os termos "natal" e "natalício" significam "respeitante ao nascimento" e que o nascimento é o de Cristo. Logo, o significado da quadra de Natal outro não é do que a comemoração do aniversário do nascimento de Jesus Cristo, filho do Deus dos cristãos. Já lá vão 2005 anos desde que assim é, repetidamente, pelo que não há possibilidade de se alegar ignorância do facto.

Repito: mas, então, em que ficamos?


O Estado Português – e logicamente os respectivos agentes em sua representação – é não confessional ou antes pelo contrário?

Se é não confessional, por que razão a atitude de expor publicamente um símbolo de um evento cristão no edifício do Parlamento – o edifício do Estado por excelência! –, à vista de todos? Se é não confessional, por que razão um seu dignitário, o segundo da mais alta hierarquia, profere mensagens de Natal? Será que a exibição desse símbolo da comemoração do Natal cristão e a mensagem comemorativa do natalício evento cristão não afrontam os seguidores de outros credos também, como o crucifixo pendurado na parede de uma qualquer obscura escola?

Onde está a coerência do Estado não confessional?

Duas perguntas se perfilam agora:

1. Será que os restantes representantes do Estado vão – eles também – proferir mensagens semelhantes, como, aliás, têm feito todos os anos, até aqui? Mas até aqui desculpavelmente, ao passo que, a partir de agora, sem desculpa alguma. Fica-se na expectativa...

2. Será que coerentemente os representantes do nosso Estado laico e não confessional, vão tratar todas as restantes religiões de forma igual, ou seja, quando do Ramadão, endereçarão uma mensagem aos muçulmanos e apressar-se-ão a colocar à porta da Assembleia um símbolo dos coramistas? E o mesmo se diga em relação aos budistas? E o mesmo se diga em relação aos induístas? E o mesmo se diga em relação aos xintoístas? E o mesmo se diga em relação aos adoradores de belzebu, que os há, como é sabido, e também são cidadãos de corpo inteiro? E etc. e etc. e etc.?

Quando se tomam atitudes, principalmente quando tais atitudes são assumidas por responsáveis a altos níveis do aparelho do Estado, há que manter a mais rigorosa das coerências. A todo o custo. Sob pena de se perder para sempre qualquer tipo de credibilidade.


É que incoerente em sua alcova, qualquer um pode ser, sem prejuízo para ninguém. Incoerências em representação do Estado... bem... isso já é outra coisa... E há que saber distinguir.

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