quinta-feira, agosto 26, 2004

56. Questão de educação cívica

Mas a falta de senso comum e postura adequada perante a vida e a sociedade não se verificou apenas no decurso da prova. Também nas declarações posteriores. Como, aliás, vem sendo hábito. E não somente dele. Disso, porém, se falará em outra oportunidade.

Assim terminei o post anterior ("56. Estatura mental, precisa-se!", de ontem), relativo ao desempenho do atleta Rui Silva na final olímpica dos 1.500 metros, em que “apenas” obteve a medalha de bronze, por, em minha opinião, errar persistentemente na táctica que adopta em cada prestação a que é chamado, sem que se aperceba do erro ou para ele seja advertido.

Pois bem, chegou a oportunidade. Retomemos, pois, o tema.

Totalmente satisfeito com o resultado conseguido e nem em mais estando interessado (arrogantemente chegou a vangloriar-se de aquela ser a sua táctica e ou corre assim ou não corre. “Se der, dá; se não der, não dá”; à tirada apenas terá faltado o tão habitual quão simpático “prontos!”…), logo tratou de aproveitar o ensejo e a câmara ali à frente para “bojardar”, desancando não se sabe quem ou o quê (e será que ele próprio sabia?...) proferindo os habituais mimos, como sejam “isto é uma bofetada com luva…” ou “…eram muitos que estavam contra…”, e outras maravilhas que tal.

O mínimo que legitimamente se lhe requeria era que, uma vez atirando aquelas pérolas de retórica para o éter, para causar efeito que se desconhece qual deveria ter sido, ao menos que tivesse tido a frontalidade de “chamar os bois pelos nomes”. Mas qual quê!?! Uma vez mais – não será a última, decerto – ficou-se por generalidades inconsequentes de altíssima zanga sem… destinatário!

Quer isto dizer que, num momento que, no seu ponto de vista, era de felicidade pura, Rui Silva não resistiu a preterir o doce mel ao amargo fel que lhe corrói as entranhas! Que tanto mal lhe teriam feito, meu Deus!... Que tanto mal!...

Por mais voltas que demos à cabeça, não nos é possível apreender a razão de uma tal postura de zanga, de incompreensão social das coisas, de total impreparação pessoal que leva um atleta, em momento de glória, a malbaratar, seja lá qual for o pretexto, esse momento de alegria e felicidade sem par, em favor de um outro de rancor e ódio mesquinhos.

Suprema infelicidade, vergonha sem igual!

O pior, todavia, é que Rui Silva não constituiu nem constitui caso isolado. Tristes atitudes destas são mais do que comuns nos nossos atletas. Não me lembro de competição alguma em que estejam presentes, que não tenhamos, no fim, nós também, um presentinho de ranger de dentes odiento, em que se manifestam, urbi et orbe, deficiente estruturação mental, completa desarrumação emocional, ausência de maneiras, enfim!

Deste modo, com toda esta impreparação – as performances atléticas não dispensam preparação psíquica e emocional, como qualquer cidadão de senso comum bem sabe – como pode pretender-se que regularmente bons resultados se obtenham? É impossível!

Se perdem, os nossos atletas jamais o fazem por incapacidade própria. Sempre por culpa alheia. O último episódio de uma saga de ridículos eventos é o que teve lugar há dias, a propósito de umas sapatilhas de treino rotas… Imagine-se!

Se ganham, ó tristeza das tristezas, nunca o fazem por si sós, pelo prazer de competir, pela alegria indizível de vencer obstáculos, de superar-se, de elevar o seu esforço ao zénite onde se recolhem os louros da glória mais bela que alguém pode ter. Não, os nossos atletas são diferentes dos restantes. Quando vencem, não se limitam a vencer simplesmente. Fazem-no sempre – sempre, caros senhores!... – contra! Contra alguém, contra algo, contra “tudo e todos”! Tudo e todos que jamais alguém consegue saber o que é, quem são. Porque não os referem. E não referem, muito simplesmente porque… apenas existem em mentes delirantes de segura paranóia.

Este comportamento ridículo e anti-social não era próprio dos portugueses. Na verdade, não éramos isto que vamos vendo. Mas… nisto estamos transformados.

Sim, “estamos”. Porque o que fica dito não é – infelizmente não é – aplicável tão somente aos atletas. Eles, aliás, não sendo cidadãos desinseridos da sociedade envolvente, mais não fazem do que reflecti-la. Constituem, pois, apenas uma parcela bem ilustrativa e extremamente visível de um todo que somos, como “estamos”.

Assim sendo, porque a infeliz realidade é que o é, resta tentar perceber o que a este status quo nos conduziu e a razão de assim ter acontecido.

Décadas de relativo isolamento, com o consequente desfasamento do modus operandi dos outros povos? Ou pecha que já vem do antecedente? Liberdade mal digerida e acquis de democracia deficientemente assimilado?

E sabê-lo? Mas interessa muito estudar o efeito, começando por compreender as causas.

Uma coisa é certa: estamos um povo extremamente reivindicativo dos direitos que lhe são devidos. Felizmente. Mas estamos, quomodo, extraordinariamente alheados dos deveres que, em sã correspondência, nos cabem e devemos respeitar. Infelizmente.

Tudo isto resulta, afinal, numa grande ausência de noção das realidades sociais e inerentes responsabilidades de cada um de per si e de todos em geral, e enorme falta de educação, a nível familiar e escolar.


É isso! A nossa educação cívica é simplesmente deplorável!

4 comentários:

António Balbino Caldeira disse...

Obrigado pelo link que me embeveceu e, simultaneamente, me deu oportunidade de conhecer o seu blogue, heterodoxo e livre. Parabéns!

Ricardo disse...

Insito... parece um complexo de inferioridade, uma falta de ambição, um atestado de pequenez. Só não percebo as causas para isso... somos pequenso mas já fomos capazes de grandes feitos...

Ruvasa disse...

Nada há que agradecer. O link resultou da circunstância de ter reconhecido muito interesse no seu Portugal Profundo. Portugal profundo de onde sou originário e de onde gosto de ser. O mérito é todo seu. Limitei-me a reconhecê-lo.
Abraço

Ruvasa disse...

Mais do que complexo de inferioridade - mascarado de superioridade fátua, ridícula - é, na verdade, atestado de pequenez, Ricardo.

Imagine que até a realidade desses grandes feitos, de que qualquer grande País legitimamente se orgulharia e propagandearia pelos quatro ventos, parece termos prazer em pormos sucessiva e reiteradamente em crise.

Mas não somos nós, cidadãos vulgares de Lineu - os que contam, afinal, por muito que isso custe a alguns... -, quem o faz. Felizmente. Da soez tarefa se encarregam os tais compadres e comadres disfarçados de "opinion makers".

Reste-nos a consolação de que se trata de moda e, como tal, de efémera existência! Não remanescerão, esses. Nem os seus "feitos". Apenas o que conta permanecerá ad aeternum! Porque indestrutível.