terça-feira, agosto 31, 2004

63. “O Barco do Aborto”

Talvez um tanto oportunisticamente, sirvo-me do rocambolesco episódio do “Barco do Aborto” (que diabo de ápodo!), não para falar do ridículo evento, em que uns se mostram capazes dos mais estranhos e inusitados recursos e artimanhas, legais ou não, ou mesmo, pior ainda, legítimos ou não, para, preferentemente em alta grita, fazerem vingar as suas teses, que dogmaticamente consideram verdade única, e outros usam de poderes de que conjunturalmente estarão investidos para, com evidente inabilidade – política, mas não apenas política – darem aos adversários projecção e visibilidade que, por si sós, efectivamente não teriam, sem aquela involuntária mãozinha de circunstância.

Enfim!

O que me preocupa, porém, não é o fait-divers, ele mesmo, porque esse terá o inevitável destino de todos os faits-divers deste mundo: dura o tempo que dura um fogacho na baixa atmosfera e logo tem como destino o contentor do lixo do esquecimento, a relevância nenhuma, na primeira esquina da vida que lhes surja pela frente.

O que efectivamente se constitui em preocupação que me causa grave incómodo é o fundo da questão! O real problema do aborto e suas envolventes, vistos não à luz de princípios mais ou menos espúrios e apenas adequados ao interesse circunstancial de uns quantos, apoiantes ou opositores, mas à da efectiva realidade dos princípios e direitos humanos, individualmente considerados.

Aqui chegados, imperioso é que confesse que permanentemente sou assaltado por imensas e muito inquietantes dúvidas. Que nem sequer para consumo interior consigo esclarecer. E debato-me perante equações irresolvidas, que antevejo mesmo irresolúveis.

Fixo-me apenas em poucas certezas. A saber:

* Toda e qualquer vida humana é inviolável. Sem mais adjectivação e sem qualquer adversativa.


* Os direitos de um ser humano vivo, qualquer que ele seja, têm limite apenas na colisão com os do seu semelhante.

* Confrontando-se direitos de igual valia, terá que prevalecer sempre o do interessado que, colocado perante a sua postergação, maior e mais injusto dano sofrerá.

* Perante ainda a mesma confrontação de direitos, é dever inafastável de todos a protecção dos direitos do mais indefeso, do que de menos condições dispõe para lhes conferir valimento adequado e suficiente.

Não fora assim e estaríamos de regresso à selva. De onde viemos há milhões de anos, é preciso ter bem presente. A cada passo.

É que, por vezes, confundimos o acessório com o essencial. E o essencial é – sempre e cada vez mais – a vida. E a sua preservação.

2 comentários:

Ricardo disse...

De acordo no essencial, em desacordo no acessório. A iniciativa do barco também repudio, a defesa da vida também almejo. Só que, muitas vezes, o óptimo é inimigo do bom. Realidade: os abortos fazem-se na mesma, em território nacional ou não. Realidade 2: Quem tem menos meios socorre-se de abortos clandestinos de elevado risco à vida. Realidade 3: Quem decide abortar não se depara com meios de dissuasão e informação. Realidade 4: Ninguém, ou quase ninguém, deixa de abortar por ser proibido. Realidade 5: Tão grave como o aborto são as condições sub humanas que muitos orfãos, filhos de famílias numerosas e pobres e filhos indesejados têm.

Face à realidade e mesmo sendo contra o aborto como conceito (apesar de...) só posso concluir (opinião pessoal) que o "bom" (não é o "óptimo") seria dar condições médicas de assistência para o aborto em hospitais e outros centros de saúde conciliado com pessoal especializado com a missão de informar e sensibilizar. Mais importante ainda... para quando a abertura das mentalidades para se falar de contracepção e educação sexual nas escolas, hospitais e televisão?

Ruvasa disse...

Viva, Ricardo!

Talvez me tenha expressado de forma menos adequada.

É que julgo não haver possibilidade de estarmos em desacordo - e, quando houver, certamente que estaremos, uma vez que aderimos à blogmania -, pelo simples facto de eu não ter defendido qualquer das posições: a abortiva ou a antagónica. Precisamente porque sou assaltado por inúmeras dúvidas.

As únicas certezas que tenho são as que enunciei, ou seja, "grosso modo", a do impostergável direito à vida e a da protecção privilegiada dos mais indefesos.

Não entrei, sequer, no terreno da prática abortiva, legalizada ou legalizável ou não, menos ainda nas boas ou más razões para essa prática.

É terreno em que não quero movimentar-me, pois que nele detecto demagogia em doses verdadeiramente assombrosas - e em Portugal já pouco há que se mostre coisa de assombração!... -, em assunto de tal modo sério e grave que a não pode permitir.

Continuando, pois, a não manifestar posição quanto ao assunto, permite-me, todavia, que te dê opinião sobre algo que afirmas.

Parece-me não poder constituir boa razão para permitir prática abortiva sem peias, o facto de ninguém deixar de abortar por ser proibido e também o de ela se verificar na mesma, seja em território nacional seja fora dele.

A vingar a tese, não me parece que chegássemos longe. Estaria aberto o caminho para o cometimento das maiores ignomínias e dos mais nefandos crimes, a coberto do facto consumado ou mesmo da inevitabilidade da sua consumação.

O que, como é evidente, não pode colher.