segunda-feira, maio 09, 2005

354. A vitória da criação solitária

(…) passava o dia inteiro fechado diante de um fogão, livremente dado aos meus pensamentos. Destes, um dos primeiros foi descobrir-me a considerar que frequentemente não há tanta perfeição nas obras compostas de partes várias e feitas por mãos de diversos mestres com nas obras trabalhadas por um só. Por exemplo, os edifícios começados e concluídos apenas por um arquitecto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que os outros que muitos procuraram ajustar, utilizando paredes velhas, construídas para outros fins. (…)
René Descartes, Discours de la Méthode

Na verdade, a beleza, a perfeição residem bem mais na harmonia da unidade, no todo em que se constituem e representam, ainda que de forma talvez não tão espectacular, do que na diversidade, invariavelmente sem fio condutor, o que a transforma em amálgama de gostos e teorias sem nexo, sem continuidade que forme um todo simples, harmónico, belo.

A teoria acima desenhada por Descartes no seu famoso Discurso do Método estaria, pois, com toda a certeza, hoje em dia e em imensos sectores parasitários da sociedade igualitária - em direitos, que não em deveres - que vivemos, destinada a ser gritantemente apostrofada de atentatória das mais elementares noções e, pior do que isso, prácticas da solidariedade do Homem para com o Homem. E, no entanto, ela apenas retrata uma verdade insofismável, irrebatível.
Porque privilegia o individualismo sobre o colectivismo, o que é próprio da natureza do Homem e mola real do progresso da Humanidade, retirando aos que se habituaram a viver na sombra do esforço alheio a possibilidade de se confundirem com os reais construtores do mundo, abusivamente se apropriando de uma parcela do mérito que lhes é devido.

A obra de arte, qualquer verdadeira obra de arte, inserida seja em qual for a vertente da actividade humana, é sempre um esforço solitário, prenhe de dúvidas, desânimos e, muitas transpirações depois, do orgulho da realização final. É, pois, por força das circunstâncias, individualista. Para o colectivo ficam, como remanescente, os méritos da produção em massa. O que não é pouco, convenhamos.
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